Mundos Artificiais e Artefactos Naturais
Carlos M. Fernandes |
Entre a Arte e a Técnica há um terreno quase inescrutável. Onde está fronteira entre a obra de Engenharia e a obra de Arte? O artefacto nasce do impulso criativo ou apenas do conhecimento acumulado? Onde começa o acto criativo e termina o fascínio pelo aparelho? Será o objecto de Arte apenas ambiente trabalhado pelo Homem, com o objectivo de comunicar ideias, um meio onde se acumula a cultura e a consciência do passado? (E, nesse caso, o ambiente como meio de comunicação entre os outro animais é apenas um objecto natural, que pode ser fascinante pela sua beleza, mas vazio de consciência? Voltamos ao tema mais tarde.) A Arquitectura é, desde há vários séculos, zona de confluência de muitas destas questões. Mais recentemente, a Fotografia e o Cinema vieram alimentar o problema ao trazer consigo a complexidade técnica dos aparelhos e do meio de registo. (Na Fotografia, o aparelho e a química fascinaram antes da Obra. O aparelho foi mesmo utilizado antes da Fotografia, como veremos mais à frente.) E algumas experiências nas artes visuais, introduzidas no século XX, ocuparam campos que antes pareciam estar apenas reservados às ciências da cognição (vide Gestalt e Bauhaus, por exemplo).
Os universos artificiais (ou emergentes, para ser mais correcto), oriundos das ciências da complexidade e da notável evolução dos computadores nas últimas três décadas (os quais permitiram a realização de experiências reveladoras, autênticos Descobrimentos das terras da Complexidade), podem ser a mais recente ferramenta de análise dos obscuros contornos que delimitam (ou não) as fronteiras entre Arte e Ciência (e Arte e Técnica). No entanto, é necessário ter algum cuidado com as afirmações mal medidas. O que nos podem dar então estas Ciências que estudam os fenómenos emergentes para o diálogo entre Arte e Ciência? Talvez aquilo que a Técnica sempre nos deu: ferramentas. Ferramentas analíticas, e ferramentas no sentido literal. Vamos recuar no tempo, até ao aparecimento de um desses objectos, incontornável na História de duas artes, Pintura e Fotografia: a camera obscura. A camera obscura é “a máquina fotográfica” antes da descoberta da Fotografia. Os seus princípios de funcionamento já eram entendidos no tempo de Aristóteles, mas foi a partir do século XVI, quando no pequeno buraco das cameras obscuras originais foi colocada uma lente convexa, que o aparelho se transformou num meio para o registo permanente de imagens. Na Pintura, Vermer e Canaletto são apenas dois exemplos de artistas que utilizaram a camera para a criação de algumas das suas obras. Quando Johann Heinrich Schulze (1687-1744) ainda fazia fotogramas com letras recortadas e coladas em garrafas cheias com cloreto de prata e ácido nítrico, quando a daguerreotipia ainda era um sonho de Niépce (1765-1833), já o apparatus estava mais do que preparado para receber a nova invenção. Mas, antes da invenção da fotografia, a camera obscura servia “desenhar por cima” (na verdade também foi útil na astronomia, muito antes de Vermeer a utilizar). Hoje, nas paredes dos museus de todo o mundo abundam obras que nasceram deste artefacto. A imagem era projectada, através da lente, numa superfície de desenho. Depois, era só seguir as linhas para executar o esboço. Mais tarde, começou a ser usada para projectar imagens sobre superfícies nas quais se pretendiam fixar essas mesmas imagens por meios químicos. (Fixar!, o grande problema da Fotografia, aquele que atrasou o aparecimento talvez por duas décadas.) A mesma luz, e a prata a substituir os dedos do artista. Baudelaire (1821-1867) agitou-se, mas tinha pouca razão. A ponte entre Fotografia e Pintura já havia sido construída pelos pintores que carregavam a camera obscura quando saíam do estúdio. O processo é acessível a qualquer pessoa com conhecimentos mínimos de programação. O resultado final, o desenho com feromona (artificial), emerge da interacção entre agentes que seguem regras simples. Imaginemos uma imagem digital, monocromática, como uma rede com a dimensão da imagem (em pixels), na qual, em cada célula, está armazenado o valor do pixel, ou seja, o seu “grau de cinzento” (onde existe o negro temos 0, e onde existe o branco temos 255; entre esses dois valores é representada com alguma exactidão a gama de cinzentos de uma imagem tonalmente rica). Chamemos-lhe habitat. Cada formiga só “vê” localmente, isto é, conhece o valor da célula onde se encontra e das células em seu redor; as formigas não têm percepção global da imagem (ou do habitat), esta emerge da interacção ao nível local. (A acção de uma formiga, isolada do enxame, não é suficiente para criar um mapa cognitivo como aquele que se vê na figura, e é necessária massa crítica suficiente - número mínimo de formigas - para o estabelecimento de redes de comunicação e para a emergência de ordem.) Para além dessa capacidade sensorial, as formigas “andam” e depositam feromona nas células por onde passam. A intensidade de feromona depositada depende do contraste das zonas onde as formigas se encontram: se uma formiga, ao observar a sua célula e aquelas que estão em redor, “percebe” que está numa área da imagem com elevado contraste, deposita muita feromona; caso contrário, deposita menos (o processo é gradual, claro). Por “andar”, entende-se passar para uma das células adjacentes. Como escolhe a formiga a célula para onde se vai dirigir de entre aquelas que a rodeiam? Através de um processo probabilístico que depende da quantidade de feromona que se encontra em cada uma das células. Resumindo, as formigas tendem a mover-se para locais com mais feromona, e, ao mesmo tempo, vão incrementando a feromona quando encontram áreas de maior contraste. Seguir e reforçar. Estamos perante um fenómeno stigmérgico, isto é, comunicação indirecta através do ambiente (o termo stigmergia foi introduzido por Pierre Paul Grassé em 1959). Falta referir uma parte fundamental do modelo: a evaporação. Em cada iteração (isto é, após todas as formigas terem executado as suas duas tarefas, dar um passo e depositar feromona), a feromona em todas as células do habitat é atenuada de um modo uniforme. Sem evaporação o modelo não produziria os resultados que se observam. É a evaporação que permite a emergência de novos caminhos para as formigas, é a evaporação que permite a correcção de erros ou a posterior readaptação a um novo ambiente; imagine-se o caso em que a imagem é retirada, e no seu lugar é colocada outra, ou o caso de uma imagem em movimento: sem evaporação o formigueiro dificilmente se conseguiria adaptar a um ambiente em constante mutação. Compara-se a evaporação ao esquecimento, e temos uma possível linha analogia com os fenómenos neurológicos, dos quais falaremos mais adiante. Neste ponto podemos fazer uma ligação simples entre o modelo descrito e a prata do processo químico. As formigas reforçam as linhas depositando mais feromona (revelador), enquanto a evaporação elimina o que não interessa (fixador). Se nos lembrarmos que o grão (a alma da fotografia, Paulo Nozolino) surge dos “buracos” que aparecem na película devido à agregação dos sais de prata quando os tempos de revelação são longos, temos um quadro ainda mais interessante. Tal como as linhas desta camera obscura para formigas, que nascem do reforço constante de feromona nas áreas favoráveis, o grão emerge do reforço de revelação. Esta camera obscura para formigas foi inspirada num modelo desenvolvido pelos cientistas Dante Chialvo e Mark Millonas (How Swarms Build Cognitive Maps, 1995). Por sua vez, o modelo insere-se na vasta gama de Ant Algorithms, inspirados no comportamento das formigas na Natureza (na forma como utilizam a feromona para encontrar os caminhos mais curtos entre o formigueiro e as fontes de comida, na forma como organizam os detritos em redor do formigueiro, na forma como algumas espécies de formigas constroem galerias subterrâneas, etc..) Estes agentes simples que geram deram comportamentos colectivos complexos origem a novos paradigmas de optimização, progressos no estudo da Complexidade, e até talvez tenham aberto caminho para progressos nas neurociências. No artigo referido, Chialvo e Milonas defendem que pode existir uma analogia, mais do que metafórica, entre o comportamento das formigas e a auto-organização dos neurónios: The self-organization of neurons into a brain-like structure, and the self-organization of ants into swarms are similar in many respects. Douglas Hofstsader, no seu célèbre livro Godel, Escher e Bach, Laços Eternos, já antes referira ideia semelhante: There is some degree of communication among the ants, just enough to keep them from wandering off completely at random. By this minimal communication they can remind each other that they are not alone but are cooperating with teammates. It takes a large number of ants, all reinforcing each other this way, to sustain any activity – such as trail building – for any length of time. Now my very hazy understanding of the operation of brain leads me to believe that something similar pertains to the firing of neurons emergence of complex dynamical systems from the interactions of simple elements following simple rules. Por isso designamos os mapas de feromona (desenhos) como mapas cognitivos. Isto poder-nos-ia levar a caminhos mais complicados. São as tais ferramentas analíticas. Não recusamos a empresa mas para já ficamos por aqui.
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This text was written for Drawing by Ants, an Arts and Science project based on a Artificial Life model designed by the Dante Chialvo and Mark Millonas, later extended to black-and-white images by Vitorino Ramos and then improved by Carlos M. Fernandes. |